Por Evilazio de Oliveira
As constantes denúncias feitas por carreteiros que trabalham no transporte internacional de cargas sobre cobranças de multas indevidas e de pedidos de propinas pelos policiais rodoviários da província de Entre Rios, na Argentina, têm aumentado muito nos últimos meses. Com isso, empresários e entidades de classe têm se unido para discutir o assunto. Recentemente, uma missão do setor esteve em audiência com várias autoridades daquela província na tentativa de resolver o problema, que se agrava por ser resultado de um decreto governamental que resulta numa vigilância mais rigorosa sobre os carreteiros estrangeiros e da cobrança das multas no ato da constatação da suposta infração. Durante audiência pública recente na Câmara de Vereadores de Uruguaiana/RS, na tentativa de buscar alternativas para evitar esses abusos, o advogado argentino Federico Ferreira Achával – especializado em transportes terrestres – garantiu que o decreto provincial é inconstitucional por ferir a Constituição, e pode ser derrubado pelo governo federal. Mas, para isso seria necessário haver pressão dos governos dos demais países envolvidos no assunto. Acredita que atitudes isoladas teriam pouco efeito. Ao final da audiência pública foi redigido um documento para ser encaminhado às autoridades, em Brasília, ao mesmo tempo em que deputados da região prometiam apoio aos transportadores, na luta contra a cobrança de propinas e multas indevidas, na província de Entre Rios.
Vale lembrar que essa província, cujo limite fica a cerca de 100 quilômetros ao sul de Paso de Los Libres/AR e Uruguaiana/BR, é caminho obrigatório para quem segue para Buenos Aires ou viaja para o Chile. Para cruzá-la, os motoristas têm de percorrer cerca de 600 quilômetros de estradas e com muitos postos policiais, sempre atentos aos carreteiros chilenos e brasileiros, conforme as denúncias, embora nem mesmo os argentinos escapem desse rigor na fiscalização, das multas e dos achaques.
O presidente do Sindicato dos Transportadores Autônomos de Bens Nacional e Internacional de Uruguaiana, Paulo Dutra, recebe denúncias diariamente referentes a cobranças de multas indevidas a motoristas brasileiros que trafegam pela província de Entre Rios. Além dessas multas, que precisam ser pagas no ato sob pena de retenção do veículo, os carreteiros são submetidos a constantes achaques dos policiais que pedem dinheiro. Em caso de recusa – ou de qualquer tipo de argumentação – o motorista corre o risco de ser preso ou até mesmo espancado. Ele conta o caso de um associado que ficou várias horas algemado e posteriorente foi solto com os pulsos machucados. Esse motorista não quis registrar a ocorrência policial com medo de represálias, conta Paulo Dutra. O vice-presidente do Sindicato, José Regazzon – que por vários anos foi presidente da Cootranscau (Cooperativa de Transportes de Cargas de Uruguaiana) – relata que o assunto é antigo e motivo de muita polêmica e embates jurídicos com autoridades argentinas. Ressalta que é necessária uma ação mais efetiva do Brasil para que essa questão seja resolvida em nível de Mercosul.
Para o gerente de frota da Polivias Transportes S.A. – unidade de Uruguaiana – Valdir Bengivenga, 54 anos, 20 de profissão e há 10 no cargo, esse decreto provincial é puramente arrecadatório. Ressalta que brasileiros sempre pagaram propinas aos policiais argentinos, mas restringia-se a alguns poucos pesos, um refrigerante ou uma cerveja. Agora a coisa piorou a ponto de causar preocupação às empresas pelo elevado custo ao final de cada viagem e ao extremo rigor e exigências na fiscalização dos caminhões. Nem mesmo na gendarmeria nacional, onde se podia recorrer, isso é possível. Tudo está contaminado, avalia.
As “mordidas” dos policiais rodoviários argentinos são conhecidas dos carreteiros brasileiros. A maioria já viaja prevenida, com a quantia certa para “arreglar” as multas, conforme explica o estradeiro José Airton Correa da Silva, de Uruguaiana/RS, com 36 anos de idade e 14 de estrada. Ele é dono de um Mercedes-Benz ano 94 e está acostumado a trafegar pelas estradas do Brasil, Argentina e Chile. Segundo ele, os policiais implicam com tudo, mas preferencialmente com os pneus. Ele considera que é melhor “arreglar” e seguir viagem do que perder tempo, bater-boca e arriscar e levar pau e ir parar no xilindró. “Os “caras” são assim, estão no país deles e não dá pra ficar engrossando”. O pior – lembra – é que antes uns 10 pesos resolviam e agora eles querem o pagamento das multas na hora ou um valor bem mais alto para liberar o caminhão. “Eles mandam encostar, acham uma irregularidade, dizem que vão multar e esperam umas três horas. Se o motorista diz que não vai pagar ou não tem dinheiro suficiente, eles negociam”.
Outro motorista brasileiro que costuma viajar com o dinheiro separado para o pagamento das “mordidas” nas estradas de Entre Rios é Sérgio Luiz Silveira, 36 anos, 15 de profissão, e dono de um Scania ano 82. Ele viaja entre Uruguaiana, Córdoba/AR e Santiago do Chile transportando ferro, polietileno e o que mais aparecer. Queixa-se, sobretudo, das seguidas mudanças na legislação sobre o equipamento obrigatório, altura de cargas, pára-choques e faixas refletivas, entre outros itens. Ressalta que é preciso estar 100% dentro da legislação dos países, mesmo assim correndo riscos de ser multado, e sem escapar das inevitáveis “gratificações” aos patrulheiros rodoviários.
De acordo com o chileno Marcos Rosales, 47 anos e 20 de profissão, natural de Santiago, o comportamento da polícia rodoviária da Argentina é horrível e desrespeitoso, com motoristas do Chile, Paraguai, Uruguai e Brasil. Ele dirige um International ano 98 da Transportes P. Pizarro, na rota Santiago/São Paulo.
Lembra que de uma maneira geral, em todas as rodovias argentinas a fiscalização da polícia é rigorosa, mas quando o motorista chega à província de Entre Rios já começa a ficar tenso, porque sabe que terá problemas. E não adianta saber que o caminhão e os documentos estão em ordem. “Eles sempre acham algo para implicar”, afirma. É pagar o valor da multa ou dar dinheiro para os policiais. E como não dá para perder tempo na estrada, é preciso ligar para a empresa, explicar a situação e saber qual procedimento tomar. Explica que por meio do rastreador via satélite o patrão pode comprovar que, efetivamente, o caminhão está parado num posto policial e sempre autoriza o pagamento da propina. Ele também costuma levar uma quantia extra para esses achaques.
Quando se aproxima da província de Entre Rios, o motorista Jaime Suarez, 48 anos e 29 de estrada, começa a ficar preocupado, pois sabe que terá problemas com a polícia caminera. Chileno, residente na comuna de Maipu, nos arredores de Santiago, ele dirige um cargueiro pelas estradas argentinas, uruguaias e brasileiras. Viaja muito para Porto Alegre, Jundiaí e São Paulo. Segundo afirma, quase toda a polícia rodoviária argentina vive dos pesos que os motoristas lhe dão. Porém, de uns tempos para cá, o rigor na fiscalização, nas multas e nos pedidos de dinheiro aumentaram muito, sobretudo nas estradas que atravessam a região de Entre Rios. Os policiais são gentis, mandam estacionar no acostamento e então procedem a um exame detalhado do veículo. É claro que vão encontrar alguma coisa que não esteja exatamente de acordo com o que eles pedem. Mesmo à noite, com lanternas em punho, os policiais não hesitam em ir para baixo do veículo à procura de irregularidades. Na maioria das vezes encontram um pequeno defeito nos pneus. “E isso acontece mesmo que a empresa não utilize pneus gastos ou recapados”, observa. Diz que além do tempo perdido e do nervosismo, a multa é certa. “É pagar o valor solicitado ou dar “uma gorjeta” por fora. Além disso, se preferir pagar a multa, o comprovante só tem valor por 48 horas. Ou seja: quando voltar – caso não tenha resolvido o problema – lá vem multa de novo”, acrescenta.
O carreteiro argentino Julian Gonzalez, 59 anos, 37 de estrada e quatro no transporte internacional é natural de Puerto Iguazú, Misiones. Ele dirige um Renault ano 2006 transportando celulose e outras cargas secas da Argentina para São Paulo. Concorda que existem muitos policiais rodoviários da província de Entre Rios que são maus com os brasileiros e chilenos. Lembra que examinam tudo nos caminhões estrangeiros, procurando qualquer coisa que sirva de pretexto para multas ou para pedir dinheiro em troca da liberação do veículo. De acordo com Gonzalez, os motoristas argentinos também passam pela fiscalização, porém sem tanto rigor. Segundo ele, são cobradas multas indevidas para o pagamento imediato, e caso o motorista não queira pagar é obrigado a ficar retido no acostamento. Só depois de algumas horas eles fazem a proposta de liberação sob a condição de propina. Sempre com brasileiros ou chilenos.
Outro carreteiro argentino, Ramon Emiliano Montenegro, tem 32 anos de idade e 12 de estrada. Ele é natural de Posadas, Misiones, e dirige um Iveco ano 95, transportando pescados de Mar de Plata para São Paulo e retornando com bananas. Conta que sempre leva uma quantia separada em dinheiro para deixar com os policiais de Entre Rios, que examinam tudo no caminhão e sempre acham um motivo para multar. Ou paga a multa ou dá um troco pra eles, afirma. Acredita que os motoristas do transporte internacional são mais visados porque dispõem de mais dinheiro e não podem perder tempo. Assim, na eventualidade de ser aplicada uma multa de 800 pesos, ela pode ser negociada por 200 pesos. Explica que a multa para cada pneu considerado defeituoso é de 290 pesos e com o número de pneus usados numa carreta fica fácil ver o valor do prejuízo. Então, os patrões preferem pagar a propina e incorporar essa despesa ao custo do frete. Lembra que nunca sofreu qualquer tipo de pedido de dinheiro por policiais rodoviários no Brasil ou no Chile, países para onde também costuma viajar. Sabe que isso acontece, mas sabe também que dá cadeia para os maus policiais. Na opinião de Ramon Montenegro, o que a polícia caminera de Entre Rios faz com os motoristas de caminhão é uma “judiaria”.