Por Evilazio de Oliveira
Para os carreteiros brasileiros que atuam no transporte internacional, o Chile se constitui numa opção interessante, sobretudo pela facilidade de fretes e melhor remuneração. São vantagens que na maioria das vezes fazem esquecer as agruras da viagem, repleta de inconvenientes causados – entre outras coisas – pelos policiais rodoviários da Província de Entre Rios, na Argentina, conhecidos pela implicância com motoristas de caminhão. Na rota para o Chile, os estradeiros também precisam se sujeitar aos intermináveis entraves burocráticos nas aduanas e, depois de tudo isso, o início da grande aventura que acontece em todos os invernos: a travessia da Cordilheira dos Andes, um trecho de aproximadamente 200 quilômetros “que é adrenalina pura”, como define um motorista gaúcho.
A falada Cordilheira é uma cadeia de montanhas formada ao longo da costa ocidental da América do Sul, com aproximadamente oito mil quilômetros de comprimento, que lhe garante ser a maior do mundo em extensão. A altitude média das montanhas é de quatro mil metros e o seu ponto culminante, o Pico do Aconcágua, tem 6.962 metros de altitude. A parte meridional da Cordilheira serve de fronteira natural entre Chile e Argentina, além de ser uma importante atração turística por causa das grandes nevascas. De acordo com o Manager Mercosul da Cargomann – Transporte e Logística, de Uruguaiana/RS, Paulo Nasser, natural de São Paulo, 47 anos de idade e 20 no setor de transportes, as viagens de caminhão para o Chile sofreram uma queda de 30 a 40 por cento, ocasionados principalmente pelas condições climáticas que atrasam a passagem pela Cordilheira e também pela crescente utilização do transporte marítimo. A Cargomann, empresa do Grupo Uhmann, opera basicamente com frota de caminhões terceirizados na rota do Chile. Paulo Nasser acrescenta que as despesas com o caminhão parado por causa da neve são grandes, além de eventuais problemas com a parte mecânica e da manutenção dos motoristas. Aponta também a ausência de pontos de apoio mais eficientes com uma infraestrutura adequada para atender ao transporte rodoviário de cargas, nas proximidades das Cordilheiras.
Natural de Roque Gonzalez/RS, Claudiomir Zelmar Fenner, 33 anos de idade e 10 de volante, dirige uma carreta transportando cargas entre São Paulo e cidades da Argentina e Chile. Está acostumado ao trecho e às eventuais esperas decorrentes das nevascas que impedem a passagem pelo túnel do Cristo Redentor. Ou mesmo, nas longas esperas pela liberação, quando centenas de caminhões aguardam no estacionamento no vilarejo de Uspallata ou no estacionamento da Associação dos Proprietários de Caminhões de Mendoza. Lembra que muitas vezes acontece desses dois estacionamentos lotarem, então os caminhões precisam esperar em fila, na estrada, sob temperaturas muito baixas e sem a mínima infraestrutura. Por isso, é preciso estar bem prevenido, com roupas e cobertores para suportar as baixas temperaturas.
Além dos cuidados com o caminhão, que precisa estar sempre em boas condições de trafegabilidade. Nesses períodos de espera, quando a passagem é fechada, os motoristas costumam ser solidários com os colegas, a começar pelas refeições, pois quando cozinham em grupo repartem os alimentos que dispõem na “caixa cozinha”. “Essa solidariedade existe durante toda a travessia, quando os colegas estão sempre dispostos a ajudar, em caso de necessidade”, afirma. Lembra que nos estacionamentos gratuitos existem banheiros limpos e relativa segurança, porque, afinal estão num estacionamento público. Porém, o problema mesmo é quando se fica na estrada, sem banheiro, sem nada. E ainda correndo o risco de assaltos. “Mas, faz parte”, consola-se, Claudiomir.
Outro veterano na travessia da Cordilheira dos Andes é o carreteiro Ronaldo Gonçalves Pereira, natural de Santana do Livramento/RS, 57 anos de idade e 36 de volante. Viaja de caminhão para o Chile e Argentina há pelo menos 18 anos. Lembra que muitas vezes ficou preso durante dias à espera de liberação da passagem, por isso já conhece todos os macetes e rotinas a que estão sujeitos os motoristas nessas ocasiões. “É preciso estar preparado para dirigir nas cordilheiras, com correntes nos pneus para evitar que o veículo deslize no gelo. É preciso muito cuidado e paciência, ainda mais que no inverno as autoridades sempre vão dar a preferência e mais atenção aos turistas, grande fonte de renda para os dois países”, comenta.
Ronaldo lembra que uma vez, há uns três anos, quando trafegava ainda em território chileno e caiu uma nevasca forte, ele e outros colegas precisaram parar à margem da rodovia e foram recolhidos por uma caminhonete da polícia que os levou para um hotel, onde aguardaram até o tempo melhorar. “E a despesa toda é por nossa conta”, explica. Mesmo assim, apesar de todos os riscos e contratempos, Ronaldo gosta de trabalhar nessa rota, embora nos últimos tempos tenha preferindo viajar para a Argentina. Explica que o frete é melhor e as viagens são feitas mais à vontade, sem aquela loucura de ter dia e hora certa para entregar a carga.
Alerta que é preciso cuidar da saúde por causa das baixas temperaturas e também ter cuidados especiais com o caminhão, utilizando anti-congelantes no combustível e na água do radiador, além de cuidados com a bateria e manter o motor em funcionamento para evitar o congelamento e possíveis danos. Nesses períodos de muitos dias parados à espera de liberação da passagem, é necessário ligar o motor a cada duas ou três horas. E, à noite, deixar o motor funcionando para evitar o congelamento e também proporcionar calor na cabine para o motorista. Ele destaca também o companheirismo dos carreteiros que fazem essa linha, sobretudo por parte dos mais antigos e os chilenos, que por serem mais experientes estão sempre dispostos a ajudar e dando boas dicas sobre o trecho. “Apesar de tudo, é muito bom viajar para o Chile”, acentua.
O carreteiro Humberto de Alencar Trindade Goulart, natural de Uruguaiana/RS, 37 anos de idade e oito de estrada, trabalha com uma carreta sider na rota São Paulo, Argentina e Chile. Faz esse trecho desde criança, quando acompanhava o pai, também motorista de caminhão. Depois, ao optar pela profissão já começou no transporte internacional, a princípio acompanhado de um motorista mais antigo. Conta que há cerca de dois anos enfrentou uma nevasca muito forte nas Cordilheiras e ficou uma semana parado em Uspallata esperando a liberação. “Foi monstro”, lembra. Mas não se queixa. Destaca que para trafegar na Cordilheira o problema não é a neve. “O problema é o gelo que se forma na pista e fica escorregadio”, por isso é necessário o uso de correntes nos pneus. Ressalta que ônibus e automóveis são liberados por causa do turismo e os caminhões, como podem atrapalhar o tráfego, ficam retidos até que cesse ou diminua a intensidade da neve. “É o turismo”, salienta.
Natural de Eldorado do Sul/RS, Jorge Cassiano, 53 anos e 32 de volante é agregado e transporta autopeças para o Chile. Ele viaja nessa rota desde que começou a trabalhar com caminhão e diz gostar muito por causa da adrenalina. “Se não cuidar o bicho pega”, afirma com entusiasmo. Em todos esses anos de travessia das Cordilheiras, Cassiano acumula histórias, aventuras e vivências, como gosta de dizer. Certa vez – entre 1998 e 1999 – permaneceu 19 dias parado em Punta de Vacas, vilarejo na Província de Mendoza, Argentina, não muito longe da fronteira com o Chile. Ficou na estrada, na fila de caminhões, sem banheiro, sem nada. Nenhum tipo de conforto. Lembra que os carreteiros se ajudavam repartindo alimentos, conversando, cuidando um do caminhão do outro quando era “preciso ir para algum lugar ‘fazer as necessidades’. Muito frio, precisava ficar fazendo o motor funcionar a cada três horas pelo período de uma meia hora, no mínimo. Era uma loucura, uma fumaceira só”, lembra.
Para suportar o frio intenso, os motoristas vão bem preparados, com roupas especiais e muitas cobertas para enfrentar as noites geladas na cama da cabine. Cassiano, por exemplo, usa um macacão térmico, que inclui capuz, luvas e um protetor para os calçados e protege o corpo muito bem e custa em torno de 200 dólares. “Não dá para se arriscar”, enfatiza. Apesar das dificuldades, garante que tudo isso fica na diversão e nas boas lembranças. Afirma que o pior é suportar a burocracia nas aduanas, o mau humor, “as mordidas” e indústria de multas da polícia caminera na província de Entre Rios, conhecida pelos achaques aos motoristas brasileiros e chilenos.
Ao volante de um Freightliner 2011, o carreteiro chileno Eduardo Allendes, 32 anos de idade e 11 de profissão – natural de Roncagua/Chile – transporta pescados para mercados de São Paulo e Rio de Janeiro. Suas viagens duram em média 18 a 22 dias, folgando uma semana para ficar com a família, a mulher e uma filha com oito anos de idade. Bom conhecedor das peripécias da travessia das Cordilheiras dos Andes, diz, em “portunhol” que no inverno é complicado. Lembra que é preciso usar roupas térmicas, caixa com alimentos, cobertores e ter cuidados especiais com o caminhão. Conta que já ficou 20 dias parado no estacionamento de Uspallata, na Argentina, esperando a liberação da passagem. Lembra que havia muita solidariedade entre os motoristas que estavam no local. E também da ajuda que o Exército dava a eles, distribuindo sopa quente, café e pão nas noites gélidas. “Se a sopa era boa? Eu não sei, não provei, felizmente tinha bastante comida na caixa”, sorri.
Além das mudanças climáticas que interferem na maior quantidade de neve nas Cordilheiras, Eduardo Allendes, também se ressente das cinzas do vulcão Puyehue, que muitas vezes impede o tráfego pela passagem internacional Cardenal Samoré (ex-Puyehe) – única transitável o ano inteiro e que une Chile e Argentina, na província de Neuquén. Com isso, Eduardo Allendes precisa fazer um desvio de mil quilômetros e cruzar no Paso Libertadores nas proximidades de Santiago, centro do Chile. Mesmo assim, não reclama. Gosta do trabalho e da liberdade de dirigir sozinho e sem a pressão de horários. Fala todos os dias com a família por telefone, rádio ou internet. Comunicação não é problema, garante. E, no trecho sempre encontra caras conhecidas, dos companheiros estradeiros que como ele também enfrentam os rigores do frio e das Cordilheiras. “Um tipo especial de motorista, que não se intimida, que gosta de aventura”, sorri.