Por Evilazio de Oliveira

A falta de motoristas qualificados para o transporte rodoviário de cargas no Brasil tem levantado a possibilidade de se importar profissionais de outros países integrantes do Mercosul, sobretudo da Argentina, numa prática mais ou menos comum em localidades fronteiriças onde a atividade mesmo feita na ilegalidade, é tolerada pelas autoridades. Tratados internacionais disciplinam a atividade profissional, principalmente entre Brasil e Argentina, desde que cumpridas algumas exigências ou propiciem ao trabalhador as mesmas vantagens em termos de legislação salarial e previdenciária. Porém, na maioria dos casos, a burocracia é tanta que abre espaço para a ilegalidade.

Pelo menos 200 motoristas argentinos atuam ilegalmente em transportadoras em Uruguaiana, em razão da falta de profissionais brasileiros, estima Jorge Frizzo
Pelo menos 200 motoristas argentinos atuam ilegalmente em transportadoras em Uruguaiana, em razão da falta de profissionais brasileiros, estima Jorge Frizzo

O presidente do Sindimercosul, Sindicato dos trabalhadores em transporte rodoviário de cargas de linhas internacionais do RS, Jorge Luiz Frizzo, estima que pelo menos 200 motoristas argentinos atuem ilegalmente em transportadoras de Uruguaiana/RS. Essa situação se deve à falta de profissionais brasileiros e também às vantagens salariais, acima dos padrões argentinos, e valorizadas ainda mais pela diferença cambial. Lembra que esses profissionais podem trabalhar normalmente no Brasil, com carteira assinada e recolhendo para a Previdência. Acrescenta que muitas empresas brasileiras empregam motoristas argentinos, devidamente legalizados e acredita que essa “importação” é uma tendência natural devido à falta de bons profissionais brasileiros. Diante deste déficit, Frizzo defende a necessidade de se oferecer melhores condições de trabalho e facilidade para a profissionalização, entre outros itens que sirvam para atrair os jovens para a atividade.

O argentino José Luiz Ceballos trabalhou por 10 anos como carreteiro no transporte internacional, depois veio para o Brasil e trabalha em uma transportadora no Rio Grande do Sul
O argentino José Luiz Ceballos trabalhou por 10 anos como carreteiro no transporte internacional, depois veio para o Brasil e trabalha em uma transportadora no Rio Grande do Sul

O carreteiro argentino José Luís Ceballos, 47 anos e 20 de profissão, é natural de San Carlos, Província de Santa Fé e trabalhou durante 10 anos no transporte internacional, trazendo laticínios para indústrias de Teotônia e Santa Rosa, no Rio Grande do Sul. A busca por melhores salários o levou a fazer alguns contatos no Brasil, e há seis meses conseguiu emprego numa transportadora de Uruguaiana/RS, na qual dirige uma carreta para algumas cidades de seu país. Está feliz, embora sinta saudades da família, que ficou na Argentina. Ganha um pouco mais, em dólares, e como o patrão é bom ele procura trabalhar bem e acredita que as coisas logo vão melhorar. Conta que pegou o caminhão “destroçado”, mas aos poucos vai deixando-o em ordem. “Os argentinos dirigem melhor, são mais cuidadosos e responsáveis com o caminhão”, exibe-se.
O empresário Júlio César Droppa Guedes, 49 anos e 30 no setor de transportes, confirma que a falta de motoristas qualificados é muito grande. Diz que para cada 20 candidatos a carreteiro que ele entrevista na sua empresa, a Transjur – Transportes Internacionais Ltda. – apenas um está apto ao cargo. A empresa é familiar e tem frota de 20 caminhões que atuam no Brasil, Argentina, Chile e Uruguai. Droppa tem outra empresa registrada em Paso de los Libres/AR, onde só emprega motoristas argentinos. Na empresa brasileira tem dois carreteiros argentinos, naturalizados brasileiros, casados e com filhos, vivendo com raízes bem fincadas em território nacional.

O empresário Júlio César Droppa Guedes define os motoristas argentinos como profissionais responsáveis, pontuais e que se destacam na economia de combustível
O empresário Júlio César Droppa Guedes define os motoristas argentinos como profissionais responsáveis, pontuais e que se destacam na economia de combustível

Segundo ele, os argentinos dão de “10 a zero” nos brasileiros em termos de responsabilidade, pontualidade e direção econômica. Para comprovar o que diz, mostra planilhas de viagens feitas por brasileiros e argentinos, destacando-se a economia de combustível nos veículos conduzidos pelos estrangeiros. Lembra que esses motoristas precisam ser legalizados no Brasil, primeiro na Polícia Federal, para depois obterem CPF e inscrição no INSS. De seis em seis meses precisam renovar esse visto temporário de permanência e trabalho no Brasil. Droppa é pessimista em relação à formação de novos motoristas para suprir as necessidades das empresas. “A saída é ir treinando gente nova e oferecendo sempre salários compatíveis”.

Naturalizado brasileiro, Juan Izidro Galarza diz que se relaciona bem com seus colegas do Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, pois todos trabalham para sustentar a família
Naturalizado brasileiro, Juan Izidro Galarza diz que se relaciona bem com seus colegas do Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, pois todos trabalham para sustentar a família

Argentino, naturalizado brasileiro, o motorista Juan Izidro Galarza se esforça para falar português sem sotaque, mas não consegue. Aos 43 anos de idade, 25 de profissão e trabalhando no transporte internacional, garante que os seus conterrâneos são mais calmos ao volante, mais cuidadosos e que certamente se dariam muito bem trabalhando no Brasil. “Claro, também existem os maus motoristas como em todas as partes, mas a maioria é gente boa, acredito que as empresas lucrariam trazendo argentinos para trabalhar no Brasil”, defende. Galarza tem a habilitação argentina, mas não usa. “Pra quê?” pergunta. Prefere a CNH brasileira. É funcionário “de carteira assinada”. Garante que se identifica muito bem com os colegas brasileiros, argentinos e uruguaios, sem distinção. “Afinal, todos estão na estrada trabalhando, ganhando o sustento da família”, destaca.

O brasileiro Osmar Ribeiro Severo tem a opinião de que ao invés de "importar" motoristas, autoridades e transportadores do Brasil deveriam criar programas de treinamento
O brasileiro Osmar Ribeiro Severo tem a opinião de que ao invés de “importar” motoristas, autoridades e transportadores do Brasil deveriam criar programas de treinamento

Colega de Juan Izidro Galarza na transportadora, o brasileiro Osmar Ribeiro Severo, 48 anos e oito de estrada, se relaciona muito bem com os colegas argentinos, apesar das inevitáveis brincadeiras resultantes de uma conhecida rivalidade entre os dois países. Ele e Izidro Galarza são bons amigos e sempre que possível estão juntos, cuidando dos caminhões e lembrando as peripécias das viagens. Na opinião de Severo, em vez de importar motoristas, as autoridades e empresários deveriam criar programas de treinamento nos pátios das empresas, atraindo os jovens ou mesmo motoristas com pouca experiência. “Isso facilitaria a vida de muita gente, até mesmo dos patrões”, diz. Dono de dois caminhões que atuam no transporte internacional, Newton Bernardes, 48 anos de idade e oito no setor – natural de São Borja/RS – também cultiva admiração pelo profissionalismo dos motoristas argentinos. Lembra de um carreteiro argentino que morava em Uruguaiana/RS, tinha 22 anos de idade e era uma ótima pessoa. Trabalharam juntos durante dois anos e meio. Depois o rapaz foi para outra empresa e acabou morrendo num acidente em Canoas/RS, dentro de um posto. “Não é por ter morrido, mas era uma pessoa muita boa, um excelente profissional”, recorda. Depois trabalhou com outro argentino, fez algumas viagens para Buenos Aires e desistiu do serviço “por puro desinteresse”. Ressalta que “de maneira geral eles são bons e certamente seriam bem aceitos pelas empresas brasileiras.

Newton Bernardes já teve dois motoristas argentinos trabalhando para ele e acredita que seriam bem aceitos nas empresas brasileiras no caso de importação de mão de obra
Newton Bernardes já teve dois motoristas argentinos trabalhando para ele e acredita que seriam bem aceitos nas empresas brasileiras no caso de importação de mão de obra

A auditora fiscal do Trabalho e gerente da Gerência Regional do Trabalho, em Uruguaiana/RS, Ana Maria Torelly, esclarece que em razão de tratados assinados entre os países membros do Mercosul, trabalhadores podem exercer suas atividades em outros países em igualdade de condições, desde que sejam obedecidas as legislações específicas. Salienta que entre Brasil e Argentina e Brasil e Uruguai existem tratados mais específicos e que facilitam a vida do trabalhador, reduzindo a burocracia, principalmente em questões previdenciárias. Salienta que a pessoa interessada em trabalhar no Brasil, no caso de profissionais argentinos, o primeiro passo é fazer a solicitação na Polícia Federal, onde será expedida uma carteira de estrangeiro e um número para a obtenção dos demais documentos necessários à permanência no País e para a formalização do contrato de trabalho.

Tratados entre os países membros do Mercosul permitem que trabalhadores possam exercer suas atividades em outros países, explica a auditora do trabalho, Ana Maria Torelly
Tratados entre os países membros do Mercosul permitem que trabalhadores possam exercer suas atividades em outros países, explica a auditora do trabalho, Ana Maria Torelly

O trabalhador terá as mesmas vantagens do brasileiro, inclusive os benefícios previdenciários. Ana Maria diz desconhecer a existência de motoristas argentinos atuando em cidades da fronteira de forma irregular, embora admita que isso não quer dizer que não existam. Reconhece que diante da atual falta de motoristas capacitados para atender a demanda das transportadoras brasileiras, e de melhores salários, talvez a “importação de mão de obra” seja uma tendência natural de mercado. Por isso, cabe às autoridades e à própria classe dos motoristas brasileiros se movimentarem em defesa de seus empregos. Ela também se preocupa em fiscalizar a atividade de transportadoras que utilizam profissionais sem o devido registro, criando sérios problemas para a contagem de anos para aposentadoria ou em caso de acidentes.

Trabalhadores legalizados da Argentina, Paraguai, Uruguai e Brasil estão amparados pela Previdência do país onde atuam profissionalmente, diz Vilson Antonio Catharino, do INSS
Trabalhadores legalizados da Argentina, Paraguai, Uruguai e Brasil estão amparados pela Previdência do país onde atuam profissionalmente, diz Vilson Antonio Catharino, do INSS

O gerente-executivo do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), em Uruguaiana/RS – abrangendo oito unidades em 15 municípios da Fronteira Oeste do RS -, Vilson Antonio Catharino Rodrigues, lembra que existe um acordo dentro do Mercosul em que trabalhadores da Argentina, Uruguai, Paraguai e Brasil estão amparados pela Previdência do país onde atuem profissionalmente, desde que devidamente legalizados. O tempo de contribuição pode ser somado para efeitos de aposentadoria, além dos demais benefícios como assistência médica e seguro de vida. Segundo ele, existe uma quantidade grande de mão de obra nas regiões de Fronteira que não estão legalizadas. Sem entrar no mérito – diz – essas pessoas se arriscam, principalmente motoristas que viajam para a Argentina e de vez em quando sofrem acidentes graves, deixando a família desamparada. O mesmo pode acontecer com motoristas desses países que estejam trabalhando aqui, sem terem passado pela Polícia Federal ou contribuindo para a Previdência. Reconhece que a burocracia ainda pode servir de empecilho para as legalizações. Cita como exemplo a necessidade de todos os documentos serem traduzidos por tradutor oficial, o que encarece o encaminhamento desses papéis.

No caso da inscrição do INSS para o contribuinte de um dos países membros do acordo, será preciso apresentar a documentação numa unidade da Previdência para posterior análise e eventual homologação na unidade de Florianópolis. Mesmo que essa documentação seja organizada e apresentada por pessoa experiente, tudo é muito lento, com muita burocracia e informações desencontradas.