Por Evilazio de Oliveira Fotos Evilazio de Oliveira

Quando o carreteiro inicia uma viagem, é de se esperar que toda a documentação do veículo e da carga esteja em ordem, evitando transtornos com eventuais paradas nos postos policiais, postos fiscais ou estações aduaneiras, em viagens aos países integrantes do chamado Mercosul, cada vez mais frequentes em razão do crescente intercâmbio comercial na região. Todavia, a questão da falta de documentação completa é uma constante na vida dos carreteiros, sobretudo daqueles que atuam no transporte internacional, onde as regras nunca ficaram bem definidas, apesar dos sucessivos acordos entre os países, a começar pelas relações entre Brasil e Argentina.

Para Lauri Kotz, a esperada união aduaneira proposta pelo Mercosul não existe e quem mais sofre com as dificuldades na fronteira são os motoristas de caminhão
Para Lauri Kotz, a esperada união aduaneira proposta pelo Mercosul não existe e quem mais sofre com as dificuldades na fronteira são os motoristas de caminhão

Em Uruguaiana/RS – fronteira do Brasil com a Argentina e onde se localiza um dos mais importantes portos secos da América Latina e por onde passam cerca de 650 caminhões de cargas por dia -, os motoristas estão acostumados a longas esperas, que em muitos casos chegam a três dias nas filas. E tudo por conta da burocracia, falta de documentos, demora no atendimento resultante de poucos funcionários e do horário reduzido de expediente público. Os carreteiros precisam se submeter a essas esperas estacionando seus caminhões em postos de combustíveis ou, se ficam na fila estão sujeitos ao assédio de prostitutas e correndo o risco de assaltos. Isso tudo suportando calor, chuva, ataque constante de mosquitos e a falta de banheiros.

A situação piorou ao longo dos últimos meses, depois de as autoridades brasileiras terem optado pela redução do turno de atendimento na estação aduaneira, como forma de evitar ao máximo o risco de contaminação com o vírus da Gripe A e, também, pela exigência da LI (Licença de Importação), fiscalizada com maior frequência pelo Brasil, para mercadorias vindas da Argentina.

Jozué Vogt já ficou uma semana parado em Uruguaiana à espera da Licença de Importação para ter a carga liberada e poder prosseguir viagem
Jozué Vogt já ficou uma semana parado em Uruguaiana à espera da Licença de Importação para ter a carga liberada e poder prosseguir viagem

Nesses casos, não há Mercosul que resolva. Diante de uma série de salvaguardas protecionistas to­madas pelo governo argentino em favorecimento ao mercado interno, o governo brasileiro decide retaliar, criando dificuldades na importação de mercadorias daquele país, conforme admite o presidente do Sdaergs (Sindicato dos Despachantes Adua­neiros do Rio Grande do Sul), Lauri Kotz, 60 anos e 46 de experiência no setor aduaneiro. Segundo ele, existem trâmites diferenciados nas operações de exportação e importação. As exportações são mais rápidas, seguindo uma parametrização que em 90% dos casos as cargas vão para o “Canal Verde”, com a liberação quase imediata. Depois, em alguns casos, surge o chamado “Canal Amarelo”, quando mercadoria e documentação são verificadas e, finalmente, o “Canal Vermelho”, para cargas ou documentos considerados suspeitos de irregularidades. Na importação tudo é mais difícil, começando pela exigência da Licença de Importação, que atrasa muito a entrega da mercadoria ao importador, encarecendo o produto ao consumidor final.

O Brasil tem interesse em exportar e a fiscalização não é tão rigorosa. Porém, nas importações, e, em razão da “guerra comercial” entre Brasil e Argentina, com salvaguardas para determinados produtos, acabam surgindo essas dificuldades aduaneiras em que todos sofrem, principalmente o motorista de caminhão. Lauri Kotz critica a falta de clareza nas negociações, pelo fato do Brasil aceitar pacificamente que a Argentina impusesse salvaguardas a uma série de produtos brasileiros, surgindo um inevitável desencontro entre os negociadores e as decisões dos governos.

Sem grandes preocupações com a realidade na fronteira, Nestor Penzkofer considera que as esperas fazem parte da vida do carreteiro
Sem grandes preocupações com a realidade na fronteira, Nestor Penzkofer considera que as esperas fazem parte da vida do carreteiro

Kotz ressalta que a esperada “união aduaneira” proposta pelo Mercosul não existe. Acredita que o comércio feito no tempo da ALALC (Aliança Latino Americana de Livre Comércio) era melhor, pois deixava o Brasil livre para negociar com quem quisesse. A propalada união aduaneira não aconteceu, a não ser para as grandes cadeias produtivas, como a indústria de automóvel, salienta. Enquanto isso, aumenta a burocracia e as filas de caminhões nas aduanas.

O carreteiro Jozué Vogt, 33 anos e oito de estrada, natural de Dionísio Cerqueira/SC, dirige um Scania 99 e viaja basicamente de São Paulo para a Argentina e Chile. Ele conta que já ficou uma semana parado em Uruguaiana, à espera da LI, para ter a carga liberada. Ficou num posto nas proximidades da aduana, onde pode contar, ao menos, com banheiros limpos e relativa segurança. Vogt reclama muito da falta de estrutura em Dionísio Cerqueira, principalmente do lado argentino, quando há necessidade de esperar por muitos dias pela documentação. “É uma podridão”, desabafa. Localizado estrategicamente na divisa de Santa Catarina com o Paraná e na fronteira com a Argentina, o município de Dionísio Cerqueira é o ponto mais próximo, por terra, entre Buenos Aires e São Paulo.

Quando carregam o caminhão dizem que a documentação está em ordem, mas sempre dá problema na fronteira e perde-se muito tempo, relata Rudimar Vilant
Quando carregam o caminhão dizem que a documentação está em ordem, mas sempre dá problema na fronteira e perde-se muito tempo, relata Rudimar Vilant

Outro carreteiro que sofre com as longas esperas para a liberação de cargas na aduana, ou nos pátios das empresas, é o paranaense de Barracão, Rudimar Vilant, 31 anos e seis de volante. Ele viaja com a mulher Eunice, 26, e o filho Izaq, de oito meses, com o rosto totalmente marcado pelas picadas de mosquitos. Na ocasião, sua carga eram máquinas agrícolas que levaria para o Chile, e aguardava a documentação havia dois dias, estacionado num posto de combustível. “Faz muito calor e o ataque dos mosquitos é constante, principalmente à noite. Pelo menos dá para cozinhar e pode-se usar o banheiro, conforma-se Eunice. Segundo ela, o pior é quando o caminhão vai para o pátio de estacionamento na aduana ou nas empresas onde não é permitida a entrada de pessoas estranhas. “É preciso recorrer a restaurantes nas proximidades e muitas vezes da boa vontade dos guardas para usar o banheiro ou mesmo tomar água”. Quanto à documentação da carga, Rudimar Vilant lembra que sempre dá problema. “Quando carrega, eles dizem que a documentação está pronta, mas quando chega na fronteira dá problema, é preciso ficar telefonando e no fim se perde muito tempo, com a despesa aumentando”. reclama.

O chileno Jaime Galvez diz não ter grandes reclamações quanto às eventuais esperas na aduana, porque tudo depende da documentação exigida estar completa
O chileno Jaime Galvez diz não ter grandes reclamações quanto às eventuais esperas na aduana, porque tudo depende da documentação exigida estar completa

O argentino Nestor Penzkofer, 28 anos e sete de profissão, faz a rota Buenos Aires a São Paulo e Foz do Iguaçu, ao volante de um Mercedes-Benz 2008. Estava parado havia três dias, à espera da LI, mas não parecia muito preocupado. Apesar da instabilidade do tempo naquela região da fronteira, com chuvas fortes ou calor intenso, encontrava-se feliz, acompanhado pela mulher Maria, 35, e dos filhos Eduarda, 10, Juliana, oito e Leonardo, cinco anos. Para ele, essas esperas são normais e fazem parte da vida do estradeiro. “Afinal, o motorista é o fusível que pode ser queimado nas relações entre empresários internacionais ou nas negociações entre governantes”, explica sorrindo. Por causa das exigências legais para ingresso de algumas mercadorias no Brasil, a empresa para a qual Nestor Penzkofer trabalha já desistiu de transportar muitas cargas. Está selecionando apenas aquelas que não tenham problemas para a liberação, afirma.

O tempo do motorista de caminhão parece não valer nada e as esperas são vistas como fatos normais pelos patrões e governantes, opina Rodolfo Morales
O tempo do motorista de caminhão parece não valer nada e as esperas são vistas como fatos normais pelos patrões e governantes, opina Rodolfo Morales

Na opinião do chileno Rodolfo Morales, 61 anos e 42 de profissão, o tempo do motorista parece não valer nada e as longas esperas a que são submetidos nas aduanas acabam vistas como normais pelos patrões ou pelos governantes. Ele dirige um MACK 2004 transportando papel celulose e polietileno entre Santiago, Montevidéu e Uruguaiana e, em todas as aduanas, a espera é mais ou menos igual. Lembra, no entanto, uma ocasião em 2007 que ficou 12 dias esperando pela documentação de uma carga de tomates industrializados em Uruguaiana. “Foi terrível”. Ele está há 25 anos no transporte internacional e salienta que essas retaliações, com o endurecimento das exigências ou da fiscalização são recíprocas e que o motorista precisa se submeter, pois nada pode fazer.

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John Duarte Flores conta que devido a falta da Licença de Importação já ficou 15 dias dormindo na cabine esperando a liberação da carga em Uruguaiana

Jaime Galvez, 53 anos e 24 de estrada, é natural de Santiago/Chile, e dirige um Constellation 2007 transportando cargas refrigeradas e estruturas de alumínio entre Santiago, São Paulo, Campinas, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Costuma passar por quatro ou cinco aduanas por viagem. A mais demorada é a de Punta de Vacas, na Argentina, onde fica por quatro ou cinco horas à espera da liberação da carga. Em Uruguaiana passa direto, “porque está em trânsito”. Não tem grandes reclamações quanto a eventuais esperas, salientando que tudo depende de se estar com a documentação completa e os impostos pagos pelo importador. No entanto, Galvez faz questão de registrar a sua indignação com os policiais rodoviários de Entre Rios, na Argentina.

O tempo de espera, às vezes acontece porque certos produtos agora precisam de Licença de Importação e chegam à aduana sem o documento diz o delegado da Receita Federal, Jorge Hergessel
O tempo de espera, às vezes acontece porque certos produtos agora precisam de Licença de Importação e chegam à aduana sem o documento diz o delegado da Receita Federal, Jorge Hergessel

Para o também chileno John Freddy Duarte Flores, 37 anos, 15 de profissão e cinco no transporte internacional, essas demoras por causa de documentação incompleta sempre acontecem e acabam atrasando a viagem e prejudicando o motorista. Ele conta que já ficou 15 dias em Uruguaiana esperando a liberação da carga por falta da LI. Foi uma espera longa, com despesas de alimentação, dormindo na cabine e com pouco conforto, além da saudade da família. Lamenta que a empresa e os envolvidos na operação de exportação e importação não embarquem a mercadoria com a documentação absolutamente em ordem, evitando transtornos a todos, inclusive ao consumidor que vai pagar mais caro pela mercadoria. John Freddy dirige um Iveco entre Santiago, Buenos Aires, Uruguaiana e Foz do Iguaçu.

O delegado da Receita Federal, em Uruguaiana/RS, Jorge Luiz Hergessel, lembra que a Receita apenas cumpre as determinações de outros órgãos que fazem fiscalização ou exigências específicas a cada tipo de mercadoria. Ou seja: a Receita apenas verifica a documentação. Salienta que alguns produtos que antes eram liberados com facilidade agora necessitam da Licença de Importação, com critérios técnicos determinados pelo Decex (Departamento de Comércio Exterior). Esclarece que muitas mercadorias chegam à aduana sem esse documento, daí a necessidade de solicitação. Essas licenças podem ter um prazo de até 60 dias para a liberação, mas na realidade essa demora nunca ultrapassa os 10 dias. Destaca, também, que o setor opera com 20 pessoas quando o ideal seriam 30, além da redução de horário de atendimento, que teria sido ajustado em comum acordo com despachantes e transportadores, depois da alteração ocorrida durante o auge da Gripe A.