Por Evilazio Oliveira Fotos Gilmar Gomes
A rápida evolução no setor do transporte rodoviário de cargas no Brasil foi responsável por acentuadas transformações no comportamento dos estradeiros, sobretudo no relacionamento entre os colegas. O fato é atribuído aos prazos apertados para a entrega das cargas e ao aumento da violência nas rodovias, responsável pelo medo e pela desconfiança entre os carreteiros, cada vez mais isolados e distantes dos amigos de profissão. Tudo muito diferente do que acontecia há quatro décadas, quando camaradagem, confiança e solidariedade eram coisas normais entre os carreteiros, conforme lembram profissionais com muitos quilômetros de estrada e anos de boleia.
Aos 78 anos de idade, Francisco Lopes Martins Filho, o Chiquinho, natural de Mineiros do Tietê/SP, conta que começou a trabalhar em 1952 com um Ford F-7, como ajudante. Lembra que antigamente ser ajudante era uma forma de aprender a dirigir e conhecer a profissão. “Bons tempos.” Somente em 1956 começou efetivamente na profissão, dirigindo um FNM no transporte de combustíveis para a Shell, na rota Uberlândia/MG, Goiânia/GO e Ribeirão Preto/SP, entre outros municípios. Depois teve outros empregos, até passar a dirigir no transporte internacional. Quando chegou aos 40 anos de idade começou a sentir dificuldades para conseguir trabalho, em razão da preferência das empresas por motoristas mais jovens. Não desistiu e até hoje continua no trecho. Acredita que não pode parar de trabalhar. Se isso acontecer, ele adoece.
Lembra de pessoas que o ajudaram nesses longos anos de boleia. “Ah, mas hoje não se tem mais colega na estrada, amizade, companheirismo…” Reforça que há 40 anos o pessoal do trecho tinha mais respeito pelo colega, ninguém ficava na estrada com o caminhão quebrado. Mesmo para trocar um pneu, sempre tinha alguém para ajudar, mas hoje é preciso ter cuidado para não ser atropelado. “Existia mais respeito. Hoje os motoristas não têm mais paciência com nada, é uma loucura”, reclama. No começo, os caminhões ainda eram muito limitados, e os motoristas viajavam equipados com correntes para usar nos pneus em estradas lamacentas. Levava pá, enxada, picareta e um macaco para grandes pesos.
Acrescenta que hoje os caminhões são modernos, possantes, as estradas são quase todas asfaltadas, e o motorista não precisa mais carregar uma caixa de ferramentas para fuçar no motor. Mas o companheirismo entre os colegas não precisava mudar junto com a evolução dos caminhões, lamenta. “A pressa, a violência e o perigo de assaltos também ajudaram a terminar com a solidariedade que existia entre os colegas”, avalia. Garante que não muda o seu comportamento e vai continuar sendo um bom amigo e companheiro dos estradeiros. Hoje, Chiquinho mora em Uruguaiana/RS, às margens do Rio Uruguai, onde costuma pescar. Uma das suas paixões, depois dos caminhões, brinca.
Hélio da Costa é natural de Caxias do Sul/RS, tem 72 anos e aprendeu a dirigir muito cedo, num Chevrolet que nem lembra o ano. Pensava em seguir a profissão de fotógrafo. Desistiu e foi trabalhar como motorista de caminhão em serrarias no interior do município de Bom Jesus/RS e de municípios madeireiros de Santa Catarina. Os motoristas mais experientes tinham mais paciência com os novatos e ensinavam tudo o que sabiam, a começar pelo “encorrentamento” dos pneus para enfrentar as estradas barrentas. Ele é dos estradeiros “antigos” que apontam a violência e a pressa como principais motivos para a atual falta de companheirismo entre os motoristas.
Depois de muitos anos transportando toras de madeira e madeira das serrarias para as cidades próximas, em 1988 finalmente Hélio da Costa comprou um FNM 1958, por 4 mil cruzados. Como autônomo, transportou madeira e depois começou a comprar e revender tijolos e material de construção. Comprava nos municípios catarinenses de Içara e Morro da Fumaça e revendia na serra gaúcha. Ele lembra com saudades daquela época, principalmente pelo fato de o motorista de caminhão ser mais respeitado e de haver “palavra entre os homens, entre o patrão e o empregado”. De um modo geral, as pessoas se respeitavam mais e eram mais amigas, salienta. Revela que, apesar de toda a evolução que acontece no setor de transportes, sente muita falta da confiança que existia entre os colegas. Isso ninguém substitui, garante. Hélio da Costa continua com o seu velho FNM na garagem, “porque ninguém quer comprar”, e o utiliza para fretes eventuais.
Dono da Transportes Sérgio A. Muraro Logística e de um posto de combustível, Sérgio Antônio Muraro, 75 anos, natural de Flores da Cunha/RS, “dirige desde guri”. Apesar de ter tirado sua primeira Carteira Nacional de Habilitação em 7/11/1953 &chaves1;guardada como relíquia&chaves2;, ainda em 1950, aos 15 anos, pegou a estrada para o Rio de Janeiro dirigindo um Studebaker 1949, Boca de Bagre. Como documento, tinha apenas a Certidão de Nascimento. “Levei uma carga de vinho Raposinha, da Cantina Mosele, e entreguei tudo conforme o combinado.” Hoje ele mantém o mesmo entusiasmo e paixão pela estrada.
Gosta de conversar, de lembrar episódios do tempo de estradeiro ou, muitas vezes, apenas observar da varanda os caminhões que passam pela estrada, no distrito de São Gotardo, interior de Flores da Cunha, onde mora. Ao lado da mulher, Erci, com quem está casado há 49 anos, gosta de relembrar o começo de tudo, “da época em que os motoristas eram tratados com respeito, ao contrário de hoje, quando são tratados como verdadeiros cachorros”. Apesar da dor nas costas, resultado de tanto forcejar trabalhando, ele garante que gosta mais de viajar do que ficar parado.
“Hoje não existe mais companheirismo nem honestidade entre os motoristas. Há ocasiões em que me sinto envergonhado de certas coisas que eles fazem, embora nem sempre sejam os culpados”, reconhece. Acrescenta que existem motoristas bons, outros, porém, nem deveriam ter carteira, pela maneira como se comportam na estrada, com falta de respeito e abuso de velocidade. Pensam que são os donos do mundo”, dispara.
Apaixonado por caminhões e pela profissão, Sérgio Antônio Muraro não se cansa de contar coisas do passado, do prazer que tinha nas viagens e dos encontros com os colegas, quando todos eram amigos e se ajudavam entre si, num tempo em que não havia tanta violência e que até os policiais rodoviários tinham mais respeito pelos estradeiros. Hoje, em meio a relíquias que fazem parte de sua história, ele costuma citar três itens que devem ser preservados na vida e que repete aos filhos e funcionários: honestidade, trabalho e palavra.
O carreteiro Adelino da Costa Silva, o Nego, 68 anos, trabalha na profissão desde os 13, como ajudante de caminhão, numa serraria no Juá, distrito de São Francisco de Paula/RS. Natural de Araranguá/SC, mudou-se com a família para o Rio Grande do Sul ainda pequeno e, como precisava ajudar no sustento da família, começou a trabalhar muito cedo. Aprendeu a dirigir ao volante de um Ford 46 e de um Chevrolet 48, no transporte de toras de pínus do mato para a serraria, em estradas improvisadas, abertas com trator ou apenas pela trilha deixada pelos caminhões. “Era uma ótima escola, um belo aprendizado”, recorda.
A trajetória na estrada foi gradual, transportando madeira inicialmente para Porto Alegre, para só depois de algum tempo se aventurar a viagens mais longas como São Paulo, Rio de Janeiro ou Recife. Quando casou com Maria Luiza Scopel Silva, hoje com 54 anos, ela o acompanhou por muito tempo. “Parecia um passeio”, mesmo quando cozinhava para um grupo de motoristas que costumava se encontrar nos postos. “Era um encontro de amigos, e eu tinha muito gosto em preparar a refeição para eles, era uma alegria.” Hoje as coisas mudaram para pior, segundo relata Adelino Silva.
Ele também se queixa da desconfiança que existe entre os estradeiros, e diz que, por causa da violência, todos têm medo de assaltos. Não existe mais aquela camaradagem, e mesmo entre os motoristas o perfil exigido pelas empresas é outro. São pessoas sérias, sisudas, apressadas, sem tempo nem mesmo para descansar com decência durante as viagens. Ele reconhece que em todos os anos de profissão conseguiu adquirir muitas coisas, além de ter garantido o curso superior para as duas filhas e a compra de casa, apartamento e do caminhão com que trabalha. Todavia, se ressente dos maus motoristas que estão no trecho, apesar da proliferação de autoescolas e cursos de aperfeiçoamento. “Nada como antigamente, quando se começava aos poucos, como ajudante de caminhão”, afirma. E concorda que, além da falta de companheirismo na estrada, ninguém mais pode confiar na palavra de uma pessoa. Numa hora diz uma coisa, e logo em seguida diz outra, na maior cara de pau. “Uma vergonha.”
Na opinião do estradeiro Jaime João Boff, 61 anos e 40 de profissão, o trabalho era bem mais tranquilo na época em que começou. Não havia tanta preocupação com horários, com segurança e com o frete. “Tudo parecia mais fácil”, afirma. Natural e morador de Ana Rech, distrito de Caxias do Sul/RS, ele faz parte de uma família de produtores de hortifrutigranjeiros e de donos de caminhões que entregam a produção própria aos mercados consumidores. Depois de alguns aborrecimentos na estrada, inclusive com a perda de um caminhão, por roubo, ele continua no trecho com um baú, transportando “de tudo” para Brasília/DF, Goiânia/GO e Uberlândia/MG. Sobre as mudanças que ocorreram nos últimos 40 anos de estrada, ele destaca a crescente desvalorização do motorista de caminhão, que ninguém mais respeita, a começar pelos donos de transportadoras, que fazem o que querem. E, claro, a mudança de comportamento entre os colegas, todos desconfiados e com medo de assaltantes, além da pressa de chegar ao destino, entregar a carga e começar tudo de novo. Confessa que é totalmente contra a carga horária. “Antigamente se trabalhava com mais tempo e mais prazer”, recorda.
Com 64 anos de idade e 48 de boleia, Dirceo Sironi é dono da Transportadora Sobre Roda Ltda., em Caxias do Sul/RS, e gosta de projetar e de fazer adaptações na estrutura de seus caminhões, visando melhor distribuição de peso das cargas e, consequentemente, maior lucratividade por viagem. Conta que começou na profissão com 16 anos, dirigiu com uma licença provisória até tirar a primeira CNH, em 14/8/1964, quando comprou um Ford 46 para o transporte de lenha. Depois, já com outro caminhão, e como a maioria dos carreteiros da região, as primeiras viagens foram para São Paulo, transportando vinho. Hoje, segundo ele, tem muito caminhão disputando carga, horários apertados, motoristas no rebite, muita violência, estradas ruins e falta de uma política eficiente para o setor de transportes. Com 21 caminhões próprios na frota da empresa, ele defende o aumento da velocidade para 100 km/h para veículos de carga, licença para motoristas portarem armas, além de uma ação mais eficiente contra roubos de cargas e os desmanches de veículos, para que todos possam trabalhar com tranquilidade, como se fazia anos atrás.