Por Evilazio de Oliveira

Para a maioria dos carreteiros, a necessidade de receber o pagamento da mercadoria transportada com a polêmica carta-frete se constitui numa pedra a mais na estrada – ou num buraco, segundo alguns – e para outros, é um mal necessário, e que, apesar das reclamações no trecho, continua crescendo e incentivando uma concorrência entre os postos que, por sua vez, procuraram alternativas de favorecimento às transportadoras e ao motorista. É que, quando o carreteiro ao invés de receber o pagamento da viagem em cheque ou dinheiro, recebe a carta-frete, ele tem que procurar um posto de abastecimento que tenha convênio com a empresa que lhe forneceu o documento. Vai precisar abastecer pelo menos 30% do valor da carta para receber o restante, parte em dinheiro e parte com um cheque pré-datado, geralmente para 15 dias. Dinheiro vivo, que é bom, muito pouco.

O negócio feito entre os postos e as transportadoras é bom para ambos lados: para as transportadoras que ganham prazos negociáveis para as suas cartas-frete, e para os postos que aumentam as suas vendas, mesmo considerando-se que são vendas a prazo. Antes de liberar o crédito, os donos dos postos fazem um cadastro muito criterioso das transportadoras na tentativa de evitar calotes. Mesmo assim, acontece, conta um empresário do setor.

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O gerente do Posto Cristal III, no quilômetro 431 da BR-386, em Nova Santa Rita/RS, Carlos Gil, 40 anos, há dois na atividade e com uma experiência de 12 anos em logística – acha que seria melhor não existir a tal carta–frete. Mas, existindo, torna–se “um mal necessário”. Segundo ele, são os donos de postos que bancam as transportadoras, trocando papel por óleo, dinheiro ou cheques pré-datados e que precisam ser honrados no prazo. Tudo isso tem um custo financeiro muito grande, diz. O Posto Cristal III – cuja matriz fica em Uruguaiana/RS, na fronteira com a Argentina – trabalha com prazos de 15 a 30 dias para as aproximadamente 70 transportadoras cadastradas. São empresas do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Mato Grosso. A maioria dos uzuários da carta-frete deste posto, no entanto, são transportadores da Fronteira.

Carlos Gil explica que pelo menos para 1/3 de todo o volume da venda de combustíveis – óleo, gasolina ou álcool – ele precisa ter em caixa, em dinheiro, para a carta-frete. Segundo ele, a intenção é fazer com que o carreteiro abasteça mais, levando o restante do valor da carta em dinheiro vivo, ao invés de levar dinheiro e cheque pré-datado. Com isso ele estaria eliminando custos financeiros no banco e a preocupação em manter saldo suficiente. “Se a carta é de R$ 500,00 eu vou sugerir que ele abasteça pelo menos R$ 250,00 para levar o troco em dinheiro”.

– E as contas, como é que eu vou pagar? Pergunta o carreteiro Manuel Acunha Filho, 52 anos, 30 de estrada, e que viaja com o filho Eduardo da Silva Acunha, 22, na linha Uruguaiana/Santiago do Chile. Mesmo no transporte internacional a utilização da carta-frete é uma prática normal. “Mais de 50% das empresas pagam com carta-frete”, explica Eduardo, lembrando que isso sempre se constitui um sério problema para o carreteiro, sobretudo o autônomo, que não tem como economizar no preço do combustível. “Com a carta-frete precisamos abastecer nos postos conveniados e com os preços de venda a prazo, não tem como procurar postos em que os preços do óleo estejam mais em conta”, lamenta.

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Atuando basicamente no transporte internacional, o carreteiro Edílson Pereira Jardim, 35 anos, 17 de volante, faz a linha Porto Alegre/Uruguaiana e Uruguaiana/Buenos Aires/AR, transportando carga em geral, mas com predominância de polietileno produzido no Petrosul. Segundo ele, “só dá carta-frete, é uma barbaridade, e pra pegar um dinheirinho precisamos abastecer pelo menos 30% do valor e pelo preço a prazo. Será que ninguém vê isso?” Edílson lembra que para quem trabalha como empregado esse sistema não faz muita diferença, mas quem precisa de dinheiro vivo para pagar a prestação do pneu, o colégio das crianças, o aluguel da casa, “a coisa fica triste”.

O carreteiro Deraldo Pedro Martins, 42 anos, 25 de estrada, confirma a afirmação do colega. Ele trabalha para uma transportadora de Araraquara/SP e viaja para todo o País, sem a preocupação de receber o frete transportado. Conta que chega ao destino, entrega as notas e pega o comprovante, descarrega e fica à disposição da empresa para carregar onde mandarem e seguir outro destino. Viaja com o dinheiro certo para as despesas com combustível, pedágios e alimentação, além de cartões especiais para determinados trechos de estradas pedagiadas ou mesmo para o abastecimento. “Nenhuma preocupação com carta-frete”, garante.

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O agenciador de cargas, Alberi Silveira Cardoso, 37 anos e há seis na profissão, atua num posto de combustível na BR-386, na região metropolitana de Porto Alegre/RS, e confessa que a “choradeira” entre o pessoal do trecho é grande. Reclamam dos valores pagos pelos fretes, reclamam que ninguém paga o vale-pedágio, dos cheques pré-datados e, principalmente, das cartas-frete. Alberi, que tem um contato diário com dezenas de carreteiros e de empresas transportadoras. Sabe que a utilização da carta-frete se tornou uma prática normal, mas reconhece que também é preciso “entender o lado dos motoristas”, que sempre acabam perdendo dinheiro nessas transações.

Com uma carteira de mais ou menos 700 transportadoras cadastradas, o dono do Posto Buffon, na BR-386, em Canoas/RS, Lauro Buffon, 27 anos e nove no comércio de combustíveis, e muita experiência adquirida com a família, dona de outros 17 postos no Rio Grande do Sul e um em Joinville/SC. Ele é de opinião que a carta-frete está se tornando uma forma de pagamento disputada pela maioria dos postos, resultando num aumento da concorrência e diminuído o preço do combustível. Acredita que com o incremento dessas operações, também caem os riscos para os donos de postos, que precisam de menos dinheiro e cheques em caixa – apenas o suficiente para as trocas necessárias para os motoristas.

Lauro Buffon lembra que as empresas conveniadas para a troca das cartas-cheque são rastreadas e por isso o número de inadimplentes é considerado muito pequeno, embora sempre exista. “Muito melhor do que o cheque”, diz, “onde a gente pode fazer a consulta, mas nunca vai saber se, efetivamente, o cheque é bom”. Rindo, concorda que os postos financiam as transportadoras em relação ao prazo, mas compensa no aumento das vendas de óleo. Ele dá um prazo de uma semana e mais 10 dias para as empresas. Reconhece que os carreteiros reclamam, mas considera que esse sistema é melhor do que o cheque. “O carreteiro chega aqui com a carta-frete e sabe que aceitamos; já o cheque, nem sempre”.

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Cristiano de Matos Teixeira, 30 anos, 10 de estrada, e morador de Porto Alegre/RS, acha “esse negócio um absurdo, onde sempre acaba perdendo”. Natural de Santa Rosa do Sul/SC, trabalha como empregado, dirigindo um Cargo 2001 “pra onde tiver carga”. Lembra que com a carta-cheque, precisa abastecer pelo menos o equivalente a 30% do valor do documento, mas a preços abusivos. Se o litro do óleo custa R$ 1,53 ele paga R$ 1,67 e ainda recebe uns trocados em dinheiro vivo e o resto em cheque. “É um absurdo, eu chego a perder até R$ 40 nessa função”, desabafa. Igualmente irritado Leonir Pereira da Rosa, 49 anos, 15 de boléia, quer saber “quem foi o autor dessa idéia louca e – se souberem – que Deus o livre de se encontrarem”, diverte-se, para logo voltar a falar sério: eu carreguei com o preço à vista, não dei prazo, não quero comprar óleo fiado. Quero escolher o melhor preço e pagar à vista”.

Leonir conta que também perdeu quase R$ 40 na última “troca”, precisando pagar o diesel mais caro, ouvir as lamúrias do rapaz do posto, “que só iria receber aquele dinheiro 15 depois e outras histórias”. O pior, segundo ele, é que quando precisa trocar um cheque em algum posto, ainda pago um ágio que em certos lugares chega a 15%.